Por João Strauss
A atual discussão acerca do novo arcabouço fiscal tem permeado toda a esfera política brasileira. O que para muitos políticos aparenta ser um novo terreno com infinitas possibilidades teóricas já representa um solo severamente desgastado por economistas.
As últimas décadas, com mais intensidade a partir dos anos 90, foram repletas de experimentos e implementações de regras fiscais em diversos países. Essa nova “moda” no ambiente econômico não se deu somente na esfera prática ou política, mas também no campo das ideias. Mais correto seria dizer que a segunda precedeu e ativamente influenciou a primeira. O pensamento convencional da síntese neoclássica, uma vez já considerado mainstream, cedia seu espaço de ortodoxia para argumentos monetaristas e, posteriormente, novos clássicos e novos keynesianos. A lógica estabelecida por estes últimos, influentes até os dias de hoje, ressalta a importância da limitação da política fiscal em prol do melhor controle da dívida pública. Além disso, as regras fiscais responsáveis pela restrição dos gastos do governo serviriam como uma bússola de confiança para guiar as expectativas dos agentes, fornecendo maior previsibilidade às variáveis econômicas.
O atual ministro da fazenda, Fernando Haddad, propôs um novo mecanismo de controle do endividamento, visando substituir o atual teto de gastos. Pode se dizer que o regime vigente carrega consigo algumas características consideradas positivas pelo atual consenso econômico. Diferente de outras regras fiscais, o teto é consideravelmente simples e requer menor custo operacional para se manter, além de conferir maior facilidade de monitoramento e revisões. O caso brasileiro, entretanto, possui diferenças em relação à tendência internacional, considerando que o teto de gastos brasileiro, aprovado sob o governo Temer, visava de forma explícita diminuir o papel do Estado na economia (ocasionando em cortes de gastos em áreas sociais com o pretexto de abrir espaço para a iniciativa privada). Além disso, a regra fiscal não incorporou ao limite das despesas o crescimento do produto ou eventuais ganhos de arrecadação. Dessa forma, o teto de gastos é uma medida que não prevê aumento real da despesa primária, fazendo com que essa seja baseada no montante gasto do ano passado reajustado pela inflação.
Pela proposta do Novo Arcabouço Fiscal, o crescimento real da despesa fica limitado a 70% do crescimento da receita e, também, fica sujeito à um limite mínimo de 0,6% e máximo de 2,5%. Tal como definido pela Câmara dos Deputados, podemos dizer que o novo arcabouço fiscal:
“Mais do que impedir gastos acima de um limite, o regime condiciona maiores gastos do governo ao cumprimento de metas de resultado primário, buscando conter o endividamento e criando condições para a redução de juros e garantia de crescimento econômico.”
Este texto não ousa fornecer uma nova interpretação acerca dos fatos já conhecidos nem pretende apresentar de forma minuciosa o projeto, mas sim apresentar ao leitor, mesmo que de forma superficial, algumas das visões existentes sobre o novo arcabouço fiscal. Para isso irei sintetizá-las em 4 linhas argumentativas:
- Ortodoxia que tende a apoiar a nova regra
- Ortodoxia que tende a desaprovar a nova regra
- Heterodoxia que tende a apoiar a nova regra
- Heterodoxia que tende a desaprovar a nova regra
Vale ressaltar que essa separação é puramente arbitrária e está sendo feita para fins de simplificação. O leitor que deseja se aprofundar mais sobre o tema deve se sentir livre e encorajado a fazer sua própria pesquisa.
O impacto inicial da divulgação do novo arcabouço fiscal, realizada em uma coletiva de imprensa no dia 30/04, foi de ligeiro otimismo do mercado, com bolsa fechando em alta e dólar em baixa. Pode se dizer que o sentimento era mais de alívio do que de genuína satisfação com o projeto apresentado, já que havia um medo generalizado no meio liberal de uma medida que permitisse políticas fiscais mais arrojadas do Governo. Entretanto, a regra recém-divulgada representava uma tentativa de restrição dos gastos do Estado, limitando o crescimento real da despesa ao crescimento da receita. Rapidamente foram feitas simulações buscando entender como o novo arcabouço impactaria a economia, o resultado foi, ao mesmo tempo, positivo para uns e preocupante para outros.
A distinção entre os primeiros dois posicionamentos se dá, em grande medida, ao grau de aversão a interferência Estatal na economia, ou até que ponto seria razoável uma expansão da política fiscal. De forma resumida, o novo arcabouço tem como ponto positivo a contenção do crescimento da despesa e, nos aspectos negativos, estabelece um crescimento mínimo da despesa e uma punição pouco rígida caso não se cumpra a meta de superávit primário (crescimento da despesa se limita a 50% ao invés de 70%).
Para o consultor de economia e professor Felipe Salto, o novo arcabouço significa um passo para frente, entretanto, com ressalvas. Em publicação na revista da Warren Investimentos o economista conclui que: “a nova regra fiscal é a primeira etapa de um conjunto maior de providências que precisarão ser tomadas para viabilizar sua aplicação.”
Se por um lado para economistas ortodoxos a preocupação se dava em relação ao limite mínimo imposto para o crescimento da despesa, de forma antagônica, para pensadores Heterodoxos o problema tende a ser na imposição de um teto. As últimas duas linhas argumentativas costumam enxergar o arcabouço como uma melhoria em relação ao teto de gastos, tento em vista o caráter liberal e atenuador da máquina Estatal. Entretanto, a limitação do crescimento das despesas representa uma restrição à capacidade de fazer políticas sociais do governo.
O economista e autor do livro “Teoria Monetária Moderna” David Decacche argumenta que o novo arcabouço fiscal “impõe, matematicamente, a necessidade de uma PEC com a alteração dos atuais pisos da saúde e educação, visando reduzir o crescimento dessas despesas para próximo da velocidade máxima do teto. Isso porque o teto cresce na velocidade de 70% da receita (ainda limitado a 2,5% de ganho real) e saúde e educação crescem com base em 100% da receita.”
Dessa forma, o que diferencia essas duas últimas visões é, em grande parte, a disposição para se aceitar um limite aos gastos governamentais.
Saindo do campo teórico e partindo para a esfera política, encontramos um evento raramente visto, tanto PSOL como Partido NOVO votaram 100% contra a proposta da nova regra fiscal!
Elaborei um estudo subjetivo dos discursos feitos na votação da Câmara dos Deputados sobre o Texto Base do novo arcabouço fiscal. Ao total foram feitos 11 discursos do partido NOVO e 12 do PSOL. A partir dessa amostra foi possível estabelecer, para cada discurso, algumas motivações e argumentos.
Conclui-se disso que, apesar de ambos os partidos terem votado contra o projeto apresentado pelo governo, os motivos são completamente opostos. Tal resultado demonstra a complexidade de se obter um consenso sobre regras fiscais e serve como um exemplo real da teoria da ferradura, que argumenta que visões, mesmo que opostas no espectro político, por mais que antagônicas que sejam em princípio, podem chegar nas mesmas conclusões.
Se por um lado, para os políticos no NOVO o aumento dos gastos é algo para se preocupar, para os políticos do PSOL o real problema seria a limitação dos investimentos.
O debate sobre regras fiscais é extenso e encontra bastante fundamentação teórica na literatura econômica. Certamente o tema bebe de outras fontes, tendo em vista que a discordância não se dá somente sobre qual regra seria a melhor para se adotar, mas também se deveria de fato haver uma regra. Para isso, o leitor que desejar se aprofundar mais sobre o tema deve se atentar ao debate de eficácia da política fiscal (discussão divisora de águas para economistas), conferir a literatura existente sobre regras fiscais e, principalmente, ouvir o podcast do PET-Economia UFF, realizado em parceria com a Julia Braga, professora e coordenadora de estudos da conjuntura macroeconômica do IPEA!